A responsabilidade civil nos crimes em transportes coletivos
Garoto de 11 anos morre vítima de bala perdida durante assalto a cobrador de ônibus; passageiro sofre atropelamento fatal após descer de veículo em movimento para fugir de assalto; estudante fica cego de um olho após lesão decorrente de objeto arremessado para dentro de coletivo; grávida fica paraplégica após levar tiro em ônibus; motorista que andava armado é assassinado ao reagir a assalto; PM fardado leva tiro durante assalto e não pode mais trabalhar. De quem é a culpa?
São muitas e variadas as questões sobre responsabilidade civil que chegam ao Superior Tribunal de Justiça, unificador da legislação infraconstitucional. Entre elas, está a discussão sobre a culpa de empresas de transportes coletivos, cuja função é levar o passageiro, incólume, de um lugar para outro, por crimes ocorridos durante o trajeto. Afinal, a empresa também é vítima e se defende, alegando, geralmente, caso fortuito ou força maior.
Em 1994, o hoje aposentado ministro Torreão Braz, relatou o REsp 50.129 no qual votou pela concessão de indenização por causa de morte durante assalto num vagão de trem da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). Na ocasião, ele lembrou que o caso fortuito ou a força maior caracterizam-se pela imprevisibilidade e inevitabilidade do evento. “No Brasil contemporâneo, o assalto à mão armada nos meios de transporte de cargas e passageiros deixou de revestir esse atributo, tal a habitualidade de sua ocorrência, não sendo lícito invocá-lo como causa de exclusão da responsabilidade do transportador”, afirmou. A decisão determinou indenização baseada na esperança de vida de acordo com a tabela do Ministério do Planejamento e Assistência Social (MPAS).
No caso do garoto vítima de bala perdida, a empresa foi condenada, inicialmente, a pagar à mãe indenização por danos morais e um salário e meio por mês até a data em que o filho completaria 25 anos. O tribunal de justiça manteve a responsabilidade da empresa, mas retirou a obrigação do valor mensal, pois não teria se comprovado o dano material. Ao examinar o caso, em 1998, o STJ manteve a decisão, reconhecendo a responsabilidade da empresa na morte do menor. “Não vulnera a lei a decisão que impõe à empresa a prova da excludente da responsabilidade pela morte de um passageiro”, afirmou o relator, ministro Ruy Rosado de Aguiar, também aposentado .
Na ocasião, o relator transcreveu trecho do voto do desembargador Cláudio Vianna Lima, do Rio de Janeiro, sobre o caso. “Elas (as concessionárias de transportes) podem exigir do concedente tarifas mais adequadas e acobertar-se dos riscos mediante contratos de seguro, a exemplo do que acontece nos países desenvolvidos”, disse o desembargador no voto. “O que não se concebe é que famílias inteiras, geralmente de parcos ou de nenhum recurso (o usuário de tais serviços pertence às classes mais humildes) fiquem desamparadas, relegadas à miséria, por decorrência de uma exegese fossilizada da lei que remonta ao começo do século”, completou. (Resp 175.794).
Pulo para a morte
Durante assalto à mão armada em ônibus, passageiros pediram para que o motorista abrisse as portas. Um deles saltou com o veículo em movimento, foi atingido pelas rodas traseiras e morreu. Os pais entraram na Justiça. Condenada, a empresa alegou, em recurso especial, que a morte decorreu do assalto, causado por terceiro, o que é excludente de responsabilidade da empresa transportadora.
Apesar de a Segunda Seção já ter firmado jurisprudência reconhecendo o argumento da empresa de que o assalto à mão armada dentro de coletivo constitui força maior a afastar a responsabilidade da transportadora pelo evento danoso daí decorrente para o passageiro, o ministro Aldir Passarinho Junior, relator do caso, deu apenas parcial provimento ao recurso especial.
Segundo entendeu, houve precipitação do rapaz, até compreensível nas circunstâncias. “Mas houve um outro ingrediente, e este atribuído à empresa: é que o motorista do coletivo, imprudentemente, abriu as portas para que os passageiros saltassem”, ressaltou. “Não importa se o fez para ajudar ou não. Relevante é que, ao fazê-lo, em situação de evidente perigo para aqueles que se atirassem na via pública com o ônibus em movimento, assumiu o ônus das consequências, e, por via reflexa, a empresa recorrente da qual era preposto”, concluiu o ministro. A decisão foi pelo caso fortuito em relação ao assalto, mas culpa concorrente, devendo ser abatido 50% do valor devido pela empresa. (Resp 294.610)
E o estudante do Rio Grande do Sul, que perdeu um olho, atingido por objeto atirado pela janela? Caso fortuito? A Terceira Turma aplicou a jurisprudência firmada. “A presunção de culpa da transportadora pode ser ilidida pela prova de ocorrência de fato de terceiro, comprovadas a atenção e cautela a que está obrigada no cumprimento do contrato de transporte”, afirmou o ministro Castro Filho (aposentado), em 2003.
Sem responsabilização da empresa, sem indenização para o estudante. “O arremesso de objeto, de fora para dentro do veículo, não guarda conexidade com a atividade normal do transportador. Sendo ato de terceiro, não há responsabilidade do transportador pelo dano causado ao passageiro por causa de objeto atirado pela janela”, acrescentou o ministro. (Resp 231.137)
Grávida e paraplégica
A grávida, atingida por um tiro durante tentativa de assalto ao ônibus em que estava, teve paraplegia permanente dos membros inferiores, impedindo-a totalmente de exercer atividade remunerada, necessitando de ajuda de terceiros até para os atos mais corriqueiros da vida cotidiana. Ela conseguiu indenização da empresa.
A sentença reconheceu que a empresa possui o dever legal e contratual, como transportador, de conduzir o passageiro são e salvo a seu destino. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A empresa recorreu, mas a Quarta Turma, por maioria, manteve a decisão de indenizar. “Por não ser mais ocorrência surpreendente, alcançando, inclusive, certo nível de previsibilidade em determinadas circunstâncias, as empresas que cuidam desse tipo de transporte deveriam melhor se precatar, a fim de oferecer maior garantia e incolumidade aos passageiros”, afirmou o ministro Cesar Asfor Rocha, que divergiu do relator e teve a tese seguida pelos demais membros da Turma.
No julgamento, o ministro Ruy Rosado de Aguiar acrescentou: “A existência de dinheiro no caixa do cobrador é um atrativo, muitas vezes, para a prática do delito. Por isso, em outros países, já não se usa moeda para pagamento de transporte coletivo. Então, se a empresa não demonstrou que tomou as providências necessárias para evitar ou pelo menos diminuir o risco, que existe, penso que ela responde.” (Resp 232.649)
Reação e Morte
A família entrou na Justiça pedindo indenização pela morte do esposo e pai, um motorista de ônibus. Ele estava armado, e ao tentar evitar o roubo do cobrador e de passageiros, foi baleado pelos ladrões e acabou morrendo. O tribunal de justiça, por maioria, não responsabilizou a empresa. “Na ação de indenização, fundada em responsabilidade civil (CC, art. 159), promovida por vítima de acidente do trabalho ou por seus herdeiros, cumpre-lhes comprovar o dolo ou a culpa da empresa concessionária de transporte coletivo, expresso em ato positivo ou omissivo de seu preposto”, diz um trecho da decisão.
O desembargador Élvio Schuch Pinto, que ficou vencido, afirmou. “Se reagiu, foi, quem sabe, pensando em defender o patrimônio da própria empresa. Por que iria reagir? Imaginou que assaltados estariam não só os passageiros, como até o ônibus levariam, que é muito comum”, afirmou.
No julgamento do recurso especial no STJ, o ministro Aldir Passarinho Junior (aposentado), concordou com a tese vencida no tribunal estadual, e fixou indenização para a viúva e filho, com pensão mensal e ressarcimento por dano moral de 50 mil para cada um. “Configurada situação em que a empresa, por omissão, permitiu que motorista seu andasse armado ao conduzir coletivo, bem como deixou de treiná-lo adequadamente para que não reagisse a assalto no ônibus, que terminou por lhe ceifar a vida, não se caracteriza, em tais circunstâncias, força maior a afastar a responsabilidade civil da empresa pela morte de seu empregado”, afirmou o relator.
Aldir Passarinho Junior lembrou, ainda, que a morte ocorreu no exercício do contrato de trabalho, que o obrigava a trafegar por locais perigosos, expondo-se a risco que deve ser assumido pela empregadora, pois é inerente à atividade comercial que explora com intuito de lucro. Insatisfeita com a condenação, a empresa ainda tentou recorrer ao Supremo Tribunal Federal, mas, em juízo de admissibilidade, o então vice-presidente, ministro Edson Vidigal (aposentado), considerou o recurso inadmissível, por refletir mero inconformismo com a decisão do STJ. “Admiti-la (a pretensão) seria fazer do STF instância revisora dos julgados do STJ, no que concerne à verificação dos pressupostos de cabimento do apelo especial”, asseverou. (Resp 437.328)
Policial Militar inválido
Ao examinar o recurso especial de policial militar que ficou inválido após levar tiro no pescoço durante assalto a ônibus, a Terceira Turma lembrou, inicialmente, que a empresa só responde pelos danos resultantes de fatos conexos com o serviço que presta, conforme jurisprudência fixada pela Segunda Seção. “A Turma deve decidir à base do que aconteceu: a parada irregular, contra a lei, que resultou na invalidez de um dos passageiros”, afirmou o agora presidente do STJ, ministro Ari Pargendler, ao votar quando era membro da Turma.
O então ministro Carlos Alberto Direito, já falecido, concordou com o relator. Ele afirmou que tal circunstância retira a substância dos precedentes sobre a exclusão do fato de terceiro para a configuração da responsabilidade. “Fica evidente que a empresa agiu com culpa ao parar em lugar não devido e, particularmente, em lugar sabidamente perigoso”, acrescentou. Foi dito, ainda, que ele foi baleado apenas porque estava fardado.
A indenização foi, então, determinada pelo relator, nos seguintes termos: “a pensão mensal é devida pela diferença entre o que o autor recebe do Estado como inativo e o que receberia no posto imediatamente superior ao de cabo, a partir do momento em que colegas seus, nas mesmas condições de tempo na carreira, teriam acesso a essa graduação”. A empresa foi condenada a pagar também 30 mil reais por dano moral e 30 mil por danos estéticos. (Resp 200.808)